Homens no centro da dança

Foto: MLyra

Por Erika Fraga e Gianfrancesco Mello

Atualmente, deparamo-nos com uma sociedade capitalista que pretende nos dominar e comandar. Essa sociedade nos sugere, a cada minuto, como devemos nos vestir ou agir. A realidade, entretanto, faz-nos esquecer que podemos construir nossas próprias opções e a nossa própria história. Além disso, essa mesma sociedade esquece que possuímos sentimentos e emoções que necessitam ser considerados e expressados. Contudo, inseridos nesse meio, existem pessoas que buscam a transformação e a superação da hegemonia. Ao observarmos as manifestações socioculturais de cunho popular ou erudito, percebemos como as manifestações artísticas e culturais estão ligadas às formas de organização social em que foram produzidas.

Tentando compreender a importância da dança como meio de formação humana, a Agenda Cultural do Recife, neste mês, resolveu passear por esse viés, porém de uma maneira masculinizada. Isso porque queremos entender como está a formação do bailarino no Recife, desde o balé clássico ao contemporâneo, como estão sendo desenvolvidos trabalhos nessa área e o motivo pelo qual existem mais bailarinos contemporâneos e populares no Recife do que clássicos.

Julcélio Nóbrega. Foto: Diuvulgação
Começaremos então com a formação clássica. No balé clássico, é fundamental se apropriar da técnica institucionalizada sobre a qual o significado e o código reflitam uma sociedade hierarquizada e autoritária. O trabalho clássico propõe a reprodução e repetição a fim de chegar a um movimento tecnicamente perfeito. No entanto, a modalidade encontra barreiras quando algum indivíduo do sexo masculino decide trilhar por esse caminho. É o caso do bailarino, coreógrafo e remontador Julcélio Nóbrega, que é primeiro-bailarino da Cia de Dança Carolemos Dançarte*. Ele começou a fazer aula de balé clássico no fim de 1997, quando foi beneficiado com uma bolsa de estudos e quando “havia” preconceitos em relação ao fato de o balé clássico ser ensinado no Recife. “Foi tudo muito por acaso. Como eu já dançava popular, não me enxergava como bailarino clássico. Acho que até por preconceito da minha parte, pois pensava que essa realidade era muito contraditória com a situação do Norte e Nordeste do Brasil”, comenta. Segundo Nóbrega, aquele período da sua vida foi bastante desafiador, pois ele dominava a dança popular, mas não sabia nada da clássica. “Aos poucos, eu fui abandonando o jeito popular e absorvendo a postura clássica.”


Julcélio Nóbrega em cena. Foto: Fernando Azevedo
Para Julcélio Nóbrega, no Recife, não há muitos bailarinos na área por uma série de fatores: primeiro, a cultura local, que não permite a formação de bailarinos clássicos e muito menos a apresentação desses em comemorações festivas, porque tudo na região é muito popular; segundo, a questão do sexo, isto é, balé clássico não é coisa para homem; e terceiro, o clássico é um tipo de balé muito elitizado e não atinge a massa. “Eu mesmo não teria procurado fazer balé clássico se eu não tivesse ganho a bolsa, porque as escolas de balé clássico, normalmente, estão localizadas em bairros nobres e isso dificulta o acesso das pessoas que moram na periferia. Enfim, as questões de mercado (não ter local para dançar), sexista (machismo) e social (elitização da modalidade) são fundamentais para não termos muitos bailarinos clássicos no Recife”, explica.

Os comentários de Julcélio Nóbrega são comprovados nas palavras do bailarino e coréografo Fred Salim, que é coordenador-geral do Festival Pernambuco em Dança*. Segundo Salim, existem excelentes bailarinos clássicos na cidade, mas eles optam por trabalhar, às vezes, com as companhias que são folclóricas, porque elas viajam para o exterior, tornando o retorno financeiro mais significativo. “O problema daqui é também o fato de não existir profissionalismo na área clássica. Com isso, os bailarinos não têm como sobreviver. Não existe companhia que pague para eles dançarem e por esse motivo, correm para a área do popular. É a falta de trabalho que faz com que eles optem pela companhia popular”, completa.

Fred Salim. Foto: Gianfrancesco Mello
Ainda de acordo com Fred Salim, não existem companhias profissionais, mas apenas academias e escolas de dança na área do balé clássico, o que torna o profissionalismo um pouco mais difícil para os homens. “Todo bailarino recifense, hoje em dia, é muito versátil, pois ele faz contemporâneo, moderno e clássico. Ou seja, ele aprende todas as técnicas, todavia se dedica mais ao popular, porque, com isso, ele trabalha praticamente o ano todo. Mesmo com todas as dificuldades e a falta de espaço, há bailarinos clássicos de excelente nível no Recife”, frisa.

Dayvison de Albuquerque. Foto: Divulgação
Já o bailarino Dayvison de Albuquerque, que pratica a modalidade há sete anos, diz que, nos últimos anos, no Recife, o leque na área clássica abriu um pouco e possibilitou o surgimento de mais bailarinos. “É claro que quando comecei, aos 18 anos, depois de assistir a uma apresentação do Ária* e receber um convite para integrar o elenco, tinha o preconceito pessoal e a falta de apoio. Atualmente, temos o Pernambuco em Dança, a Mostra Brasileira de Dança, entre outros festivais, que nos possibilitam mostrar o nosso trabalho. Acho que o importante é você mostrar técnica e fazer com que as pessoas percebam em você é um bailarino dançante, para poder ter espaço e continuar trabalhando com profissionalismo”, diz.

Assim como aconteceu com o balé clássico, o popular também sofreu discriminações. A sua história está intimamente ligada ao Movimento Armorial* (criado por Ariano Suassuna). O primeiro foi o Balé Popular do Recife* (1977), criado pelos bailarinos André Madureira, Antúlio Madureira, Anthero Madureira, Anselmo Madureira, Walmir Chagas, Ana Madureira, Sílvia França, Ângela Fischer e Lourdes Madureira, quase todos da mesma família.

André Madureira. Foto: Divulgação
Fruto de resistência, os membros do Balé Popular sofreram preconceitos. “Lembro que, por onde passávamos, ouvíamos comentários como: os filhos de Dona Lourdinha agora são bailarinos. Sentíamos uma conotação muito pejorativa à homossexualidade. Quando as pessoas da faculdade descobriram que eu fazia balé, começaram a dizer: olha a bailarina, olha a bailarina...”, relembra André Madureira, que pensou em colocar o nome da equipe de Grupo Cultural do Recife, mas Ariano Suassuna insistiu que fosse Balé Popular do Recife.    

Se para as mulheres o início na dança se dá na infância, para os homens esse começo é quase sempre tardio. Até chegarem ao “topo”, eles precisam driblar uma série de barreiras culturais, como relata Mika Silva (um dos fundadores do balé Deveras*): “demorei a iniciar na dança, minhas primeiras experiências foram no teatro de rua. Só fui começar a dançar por inspiração do Balé Popular do Recife, pois eles me encantaram. Então, quis unir a dança ao teatro e, aos 26 anos, ingressei em um grupo amador de dança. Mas não nego: no início, o bailar para mim era muito complicado, entretanto, como eu vivia envolvido com a arte (teatro) já tinha noção do que iria encontrar”. Porém, esse cenário vem tendo uma mudança gradativa, de acordo com Mabel (bailarina e professora do Balé Popular do Recife), porque já é comum encontrar garotos nas aulas de balé. Atualmente, o aluno mais novo da companhia tem oito anos.

Mika Silva. Foto: Divulgação
De acordo com o bailarino Mika, essa mudança gradativa vem acontecendo graças à história construída no passado, cujo precursor é o Balé Popular do Recife. A excelente qualidade cênica mostrada no palco deu credibilidade para os homens acreditarem que dançar está bem além da opção sexual. “Temos vários bailarinos bons, que são heterossexuais, da mesma forma de que temos vários bailarinos bons, que são homossexuais. Mas com toda a certeza, o nosso passado contribuiu para que, hoje, pudéssemos ter essa visão. O grande foco dessa aceitação é justamente esse trabalho de qualidade, afinal, ninguém vai para o ensaio com objetivo de “dar pinta”, fazemos um trabalho sério”, afirma. Essa transformação que vem acontecendo está contribuindo na divulgação da dança popular e vem ajudando as pessoas a compreenderem toda a sua história gerando uma aceitação muito maior.

Para André Madureira, o fato de o balé popular ser mais atrativo para o homem do que o balé clássico está relacionado às questões culturais. “O popular é ligado à raça, à identidade e à terra onde nascemos. Tudo o que representamos é uma tradição do nosso povo. Então, é mais fácil o homem, mesmo inconscientemente, optar pelo popular do que ele se encantar por uma dança que vem de outras origens, de outra cultura e de outros povos”, explica. Já o bailarino Mika vê o balé popular relacionado como sendo uma dança de conquista. “A meu ver, mesmo quando dançado só por homens, é uma forma de sedução para conquistar as mulheres. Isso pode ser observado na quadrilha junina. Lá, vemos na dança dos homens o desejo da conquista. Muitos deles trabalham o dia todo, mas mesmo assim se inscrevem para conquistar aquela garota e soltar o brilho dele no ar”, relata. Independentemente dos motivos citados, ambos concordam que a dança popular tem mais liberdade do que a dança clássica, já que ela relaciona a música com os objetos em cena. Nela, o bailarino pode pegar o estandarte e dizer: “essa é a minha bandeira”. Isto é, tem a liberdade de pegar um tambor para tocar e junto balançar o corpo como se um fizesse parte do outro. 

Balé Deveras. Foto: Divulgação
Com toda essa discussão, chegamos à conclusão de que as produções artísticas devem estar disponíveis a todas as pessoas, independentemente de classe social, escolaridade, sexo ou etnia. É claro que, cada vez mais, a dança vem sendo elitizada e isso precisa mudar. Atualmente, apenas festivais como, por exemplo, o Pernambuco em Dança continuam levando a dança para a periferia, o que permite que as comunidades assistam e se emocionem diante de espetáculos de dança. É uma forma de incentivar rapazes a seguirem na profissão de bailarino. Vamos reforçar a ideia de descentralizar a dança, pois.

*
Cia de Dança Carolemos Dançarte – Formação em dança desde 1983. Já exportou profissionais para companhias como Cisne Negro e Balé do Teatro Guaíra.
Festival Pernambuco em Dança – O Pernambuco em Dança surgiu em 2001 inspirada pelo Dia Internacional da Dança. Também porque já havia uma lacuna há mais de 15 anos, na dança do Recife, por causa da extinção do Ciclo de Dança do Recife e do Projeto Estação Dançar. A ideia surgiu do delegado do Conselho Brasileiro da Dança em Pernambuco, Fred Salim, com o apoio dos bailarinos pernambucanos Marcelo Pereira, Mariza Queiroga, Heloisa Duque e Mika Silva.
Ária – Inaugurado em 1991, o espaço de dança e arte é uma escola de dança e canto localizada em Jaboatão dos Guararapes, município da Região Metropolitana do Recife, que tem como objetivo não apenas o ensino da dança e do canto, mas também o aprimoramento sociocultural de seus alunos, reunindo várias formas de arte, na busca constante por uma melhor qualidade de vida. 
Balé Popular do Recife Fundado em 1977, o Balé é um dos primeiros grupos profissionais de dança do Recife e o mais antigo e constante em atuação. O Balé Popular foi, na época de sua criação, formado por artistas e produtores que não tinham formação técnica em dança, mas que se debruçaram sobre os folguedos tradicionais para aprender e catalogar seus movimentos.
Balé Deveras – Companhia profissional de danças, o Deveras desenvolve um trabalho social em Brasília Teimosa há 28 anos, utilizando a dança como inclusão social.
Movimento Armorial Tem seu marco alicerçado na obra do escritor e dramaturgo paraibano Ariano Suassuna, integrante da Academia Brasileira de Letras. O Armorial tem como meta fundamental elaborar uma arte de natureza erudita entretecida por ingredientes típicos da cultura popular. Essa corrente artística foi lançada no dia 18 de outubro de 1970, em um ritual consagrado na Igreja de S. Pedro dos Clérigos, acompanhado por uma mostra de artes plásticas e pela apresentação da Orquestra Armorial de Câmara, que tinha então como regente o maestro Cussy de Almeida.

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